quinta-feira, 12 de julho de 2018

ODE A UMA MARCHANTE

Recordamos uma das crónicas publicadas no antigo jornal "O Algarve" e dedicadas ao Calendário Regional do Programa Nacional de Marcha/Corrida. Pretendia-se, com o exemplo desta marchante, incentivar a prática do exercício físico:
Ode a uma marchante
A Luísa é uma mulher escorreita, 60 anos, activa, geniquenta. Acorda de madrugada, noite cerrada. Luísa dorme sempre pouco, a cama é madrasta e as tarefas diárias não dão tréguas. Inicia ali o dia, banqueteando-se com um naco de pão duro, da última amassadura, com banha, que lhe dá energia para as primeiras tarefas do dia. Trata do porco, dá milho às galinhas, lava o resto da loiça acumulada da noite anterior e que o cansaço não a autorizou a terminar. Passa a vassoura no pátio, o espanador nos berloques do aparador. Apanha a roupa que ficou a secar debaixo do alpendre, não fosse o diabo de alguma bátega de água estragar-lhe a barrela do dia anterior. Entala três rodelas de chouriço entre duas fatias do pão caseiro que semanalmente fabrica. Será o almoço desse dia, empurrado pela água, que certamente não faltará. A laranja, se a houver, completará a opípara refeição.
São agora sete horas, o sol acorda, espreita Luísa, ao longe, no horizonte. Muitas madrugadas ensinaram-lhe a ler a hora solar. Sabe que o autocarro parte quando o sol aparecer por detrás da copa do chaparro, ao fundo, no quintal. Salpica a cara com água fria, mostra a água aos sovacos, passa o pente nos hirsutos cabelos, calça as sapatilhas adquiridas nos saldos, e que já conheceram muitos quilómetros, veste um fato de treino azul, desmaiado, de 5 anos. Olha-se ao espelho. O rosto, finalmente, resplandece. O marido, mandrião, dorme o sono dos preguiçosos, que não dos justos. Luísa abana a cabeça, triste, e abala, só, de encontro ao destino habitual dos domingos. Hoje será em Estombar, nas Fontes. A alegria transbordante do autocarro é o prenúncio de uma marcha onde a amizade, o entusiasmo, as gargalhadas, as anedotas, apagam a vil tristeza de uma semana acabada, e trazem forças novas para a labuta, sempre igual, da semana que amanhã começa. E o madraço … ficou em casa.
(Jorge Lopes)

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