segunda-feira, 10 de maio de 2010

AS CRÓNICAS DO JORNAL "O ALGARVE"

A DULCE E A SUECA
Estais certamente lembrados da crónica “O casal Loureiro e a lenda das amendoeiras em flor” publicada neste jornal, e reproduzida no blogue www.algarvemarchas.blogspot.com. A Dulce Loureiro, mencionada nessa crónica, é uma apaixonada por jogos de cartas. Uma boa “suecada” fá-la exultar quando ganha e acabrunhar quando perde.
Num dos seus raides pelo nosso Algarve (ela vive em Arazede, perto de Coimbra) além da presença nas marchas, também não prescinde da habitual jogatina de sueca. Por sabermos do seu gosto por esse jogo, eu e minha mulher aceitamos sempre o seu repto, enfrentando o casal Loureiro naquele exercício tão esgotante para os nossos traseiros e repousante para as nossas pernas. Eu, que não nutro especial prazer em jogos pouco movimentados, acabo sempre as maratonas de sueca divertidíssimo, não porque as vitórias ou as derrotas determinem os meus estados de alma, mas sim porque é um prazer enorme assistir às reacções da Dulce. Quando ganha os olhinhos brilham de satisfação e de gozo pelo massacre infligido ao adversário. Quando perde, há sempre uma desculpa engraçada. Ou as cartas foram madrastas, ou nós estávamos com “ela toda”.
Num sábado à noite, véspera da marcha da Conceição de Tavira, decorreu um embate memorável de sueca entre nós e a Dulce e o marido. Memorável porque a nossa derrota excedeu as previsões mais pessimistas. Os ases, os setes, os trunfos fluíam nas mãos dos Loureiro e nós, pobres adversários, levámos uma goleada de que não nos recomporemos nos próximos anos. A Dulce exultava, ria, gozava. Só para ver a felicidade estampada na cara da Dulce, valeu a pena a humilhação de tão exuberante derrota.
No dia seguinte, às 9h30 já estávamos na Conceição. Utilizámos o meu carro, não só pela economia de combustível, mas também porque é mais divertido viajar com gente simpática. A Dulce talvez inebriada pela retumbante vitória da noite anterior, não deve ter dormido o suficiente, pelo que uma arreliadora dor de cabeça a atormentava, e ficou no carro a descansar um pouco. Como faltavam ainda 30 minutos para o início da marcha, a Dulce, sem que eu me apercebesse, deita-se no banco de trás do carro, passando um pouco “pelas brasas”.
Próximo das 10 horas, não vendo a cabeça da Dulce sobressair no banco traseiro, concluo que ela já estaria cá fora pronta para marchar, e tranco o carro à distância. Já a marcha ia fora da localidade quando o meu telemóvel toca e a Dulce, do outro lado, exasperada, me diz ter ficado fechada no carro. Regresso, em corrida, com receio de alguma manifestação claustrofóbica, para a libertar da prisão a que, involuntariamente, a submeti, e para não a privar da actividade da marcha de que ela tanto gosta. Acompanhei-a na recuperação do grupo, que já ia longe, com a consciência pesada da falha que cometi, mas com algum gozo pela situação cómica que estava a viver.
No fim da marcha a Dulce, sorrindo com matreirice e com aquele seu característico ar brincalhão, acusou-me, de eu ser vingativo e de a ter trancado, de propósito, devido à derrota, humilhante, da noite anterior. E ria-se, até às lágrimas, a “malvada”. Que fiquei com pouca vontade de jogar à sueca outra vez, confesso, humildemente, que sim, mas que da derrota resultasse um sentimento tão pobre de vingança, garanto que não. E afirmo isto, solenemente, cruzando os dedos indicador e anelar, fazendo o que em criança chamávamos de “figas”.
Nota: Fazer “figas” significa repúdio ou indignação ou é gesto que se faz para dar sorte, mas quando criança utilizava tal gesto como perdão para uma mentira.

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